quarta-feira, 21 de abril de 2010

A abertura de possibilidades

Por João Batista Freire

A crença na superespecialização instalou-se na nossa sociedade e parece que veio para ficar por muito tempo. O esporte não escapou a essa crença. Mesmo consagrado, o excesso de especialização parece que leva as produções a um beco sem saída. Há uma crise de criatividade em todos os setores. Amontoam-se os graves problemas na sociedade global, sem que apareçam soluções criativas. Pouco se faz além da repetição das velhas fórmulas produzidas pela hiperespecialização.
O esporte segue a mesma regra, e de tal maneira que poucos se lembram dos heróis das últimas Olimpíadas. É mais comum as pessoas recordarem os nomes de atletas como Jesse Owens, da década de 30, do que do campeão dos 100 metros rasos da olimpíada realizada recentemente na Austrália. O esporte tem corrido atrás somente do dinheiro, um Deus que exige sacrifícios permanentes de almas. Poucos atletas escapam ao seu altar de sacrifícios. Praticam uma monotonia sem fim, que faz dormir os expectadores mais insistentes.
Recentemente, milhões de brasileiros passaram meses aguardando que a seleção brasileira despertasse, finalmente, para a arte, que sempre marcou nosso futebol. Chamou mais atenção a comissão parlamentar que investigava a corrupção na CBF do que a modorrenta campanha dos comandados de Luxemburgo, Leão e Luis Felipe Scollari, o trio que parecia estar representando o nada, aquela peste que ameaçava de extinção o mundo de fantasia, no livro A História Sem Fim. (8) A monotonia, a falta de criatividade, a superespecialização estéril tem seus vícios fundados na raiz do conceito atual do esporte, tanto na sua aprendizagem como na consolidação das grandes equipes.
Alguns esportes, como o voleibol, insistem nas velhas fórmulas de fazer a iniciação dos jovens nas suas próprias equipes. Realizam triagens, escolhem os mais altos e os colocam nos trabalhos de formação de base. Poucos professores, nesse nível, são capazes de ir além do exaustivo exercício de repetir interminavelmente gestos absolutamente descolados do contexto do jogo. Outras modalidades, como o futebol, recrutam seus quadros entre os jovens que aprenderam, nas brincadeiras, a dominar a arte desse esporte. Mas apesar desse privilégio, depois do recrutamento, o talento desses jovens costuma ser extinto nos grandes clubes, dando lugar à grotesca performance de zagueiros e meio-campistas constituindo mais uma divisão de “panzers” que um time de futebol.
Não é assim que se formam as coisas na natureza. Claro está que nosso meio ambiente não é natural, mas cultural. Não obstante, nenhum de nós está aqui para contrariar as leis que regulam todas as coisas do universo. A natureza se forma na diversidade; por que motivo os seres humanos deveriam aprender na especialidade? Na formação de base, todas as coisas devem ser aprendidas por experiências as mais diversificadas possíveis. Para argumentar a favor dessa idéia, pode-se recorrer às obras de estudiosos da área da física, por exemplo, como Stephen Hawking, (9) que, em seu admirável livro O Universo Numa Casca de Noz, desfila uma monumental coleção de argumentos. Ou pedir ajuda a outro brilhante pensador, do campo da biologia, o professor Jacques Monod. (10) Sem muito esforço, aprenderíamos com ele a respeito da diversidade como fundamento da formação das coisas mais básicas da natureza.
Entre tantos investigadores de peso, a obra que mais me chamou a atenção a esse respeito é um dos últimos trabalhos publicados por Piaget, O Possível e o Necessário. (11) Segundo esse autor, qualquer ação, antes de ser realizada, deve ser tornada possível. Em outras palavras, quando uma criança, por exemplo, tem que lançar uma bola na direção da meta de futebol ou de handebol, antes de fazê-lo, por um processo que geralmente lhe escapa à consciência, cria um leque de hipóteses. Em seguida, uma dessas hipóteses será testada, levando ao êxito ou ao fracasso. Ou seja, a necessidade de realizar uma ação torna-se responsável pela criação de várias ações possíveis. A ação escolhida entre todas as outras para realizar o objetivo da criança poderá levar ao êxito, e nesse caso ela será reforçada, ou ao fracasso, criando nessa situação outro tanto de possibilidades, caso ela tente realizar novamente a ação.
Na busca de argumentos a favor dessa tese, tive a oportunidade de, junto com um colega de pesquisas, observar crianças dando fartas evidências de que, antecedendo uma determinada ação, criavam diversos possíveis (não importa se motores ou mentais, porém, o que nos ficava visíveis eram os sintomas motores). Nós as colocávamos diante da tarefa de pular corda. Nessa brincadeira, elas tinham de entrar na corda já em movimento e realizar quantos saltos quisessem. Para fazer isso, os filmes e gráficos decorrentes o demonstram, vários gestos semelhantes ao pêndulo da corda eram realizados por seus segmentos corporais antes de elas se lançarem à ação pretendida. (12)
Imaginemos, a partir daí, que, para aprender a jogar um esporte qualquer, uma criança tenha a oportunidade de experimentar um número grande de situações. Cada situação dessas será responsável pela abertura de um grande número de possibilidades, sendo que cada possibilidade dessas, quando for experimentada, poderá abrir outras tantas. Ao final de um longo processo, o acervo de possibilidades motoras, intelectuais, sociais, morais, e assim por diante, disponível no jovem que se formou nesse esporte, será imensamente mais amplo que no jovem formado em uma equipe ou escolinha que lhe impôs um sistema de superespecialização.
Do ponto de vista do desenvolvimento da inteligência para o esporte, o primeiro jovem contará com recursos bem mais amplos que o segundo. Fazendo uma tosca comparação, examinemos os perfis do jogador Pelé e o de um jogador de precárias qualidades técnicas, que não nomearei para não ser indelicado. Pelo fato de ter se formado no interior de Minas Gerais e de São Paulo, experienciado um número enorme de situações lúdicas – entre elas, jogar futebol – e, mais tarde, poder jogar com liberdade no Santos Futebol Clube, Pelé formou um número enorme de possibilidades de realizar seu jogo. Além disso, a riqueza de experiências proporcionada pelas suas brincadeiras na rua propiciou-lhe possibilidades de alta qualidade. Por fim, já que possuía possibilidades fartas e boas, adquiriu a liberdade e a competência de escolher, entre elas, a melhor para cada situação.
Já o nosso jogador de precárias qualidades, formado em uma escolinha de futebol, dessas que existem aos milhares por aí, viveu poucas experiências, formando, conseqüentemente, um leque pequeno de possibilidades. Repetindo sempre as mesmas situações, acabou por ter alternativas de pouca qualidade e, tendo poucas e más qualidades, não aprendeu a diferenciá-las e a selecioná-las. Resumindo, Pelé teve muitas e boas possibilidades, e sabia eleger a melhor delas de acordo com a situação, ao passo que o outro jogador teve poucas e más possibilidades, além de não saber escolher bem. Quanto ao jogo de futebol, Pelé era o mais inteligente dos dois.

Abraços !!!